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Mensagem: Os nossos mortos. Atravessado certo período da vida, vamos nos especializando em ossários, nas tratativas memoriais que mantemos com aqueles que nos deixaram, levando consigo parte de nossas vidas e do que somos. Após os cinqüenta anos, como é o meu caso, enterrados os pais, alguns irmãos e tantos parentes amados, além de incontáveis amigos, é de se esperar algum alheamento, uma certa aceitação do inevitável, tal o ofício dos sobreviventes na dolorosa e contumaz prática dos rituais fúnebres que a vida nos obriga. Mas não há como desnaturar a dor a perda, do impossível reencontro com o ente querido, agora guardado nos escaninhos das nossas recordações, não mais como ser ativo, mas como elemento subjacente da nossa história pessoal, personagem de algum feito, de alguma experiência em comum, para sempre no passado. O Livro da Sabedoria recomenda tirar o luto após trinta dias, pois breve será nossa vez. Mas a lacuna deixada pelo falecido lateja, às vezes por toda a vida. Quando ocorre do finado integrar o rol da infância ou juventude, compartilhando momentos que somente sua pessoa foi testemunha, seu passamento rasga páginas da vida, órfã da chancela de sua presença, perdida a partitura em comum, as aventuras vividas, para sempre nos condenando à solidão da memória. Apenas o testemunho solitário da nossa consciência permanece intacto, mas sem o lastro convivente, sem a sua amálgama necessária , a nós mesmos dando a certeza do ocorrido, face às artimanhas da memória, que as vezes se perde em seus labirintos. Os que vivem muito sofrem desta solidão nostálgica, não encontrando com quem compartilhar suas vivências, notadamente da mocidade. Aos mais jovens, um turbilhão de acontecimentos no presente não deixa espaços à nostalgia dos velhos, sequiosos todos do desfrute do tempo que passa, sedentos de vida. Olham para a frente e vêem a vastidão do porvir, enquanto os mais velhos olham o passado e sabem que tudo é fugaz, relampejante. O calor do fogo de ontem ainda aquece a alma, e não raro nos surpreende com sentimentos e emoções distantes no tempo, incandescentes à menor lufada do vento antigo, como um sopro nos corações encanecidos, e que chamamos de saudade. Paradoxalmente, no nosso inconsciente está assente que a morte é libertadora, daí a pulsão - tema tão recorrente em Freud - que conduz o indivíduo ao seu encontro, mesmo negando em palavras aquilo que confirma em atos, materializando-se nos nossos vícios como ofertórios no altar a Thanatos. A prova cabal de nosso apreço e respeito à indesejada mostra-se patente no repúdio àqueles que, mortos, ousam acordar deste sono, seja subitamente, durante as exéquias, ou por obra de algum milagre. Imaginem Lázaro, após quatro dias de sua morte, apresentando-se diante das pessoas. O terror de imaginá-lo diante de sua amada, dos amigos, da sociedade enfim. Pobre Lázaro ressurreto, sem saber ao certo o seu espaço, perdido no tempo, cadáver adiado, refém do escárnio dos contemporâneos, não obstante o milagre de sua ressurreição. A morte sempre será um mistério insondável. Dela falo neste espaço para lembrar-me de tanta gente querida que perdi nesses últimos meses. O último foi amigo de infância. Companheiro de bairro. Gente humilde, como todos nós, moradores próximos da linha férrea que corta os bairros Roxo Verde e Lourdes. As malinezas da infância ainda verberam na memória, aliadas às brincadeiras ingênuas dos meninos daqueles tempos inocentes. Tudo tão ontem! Ainda lateja o sangue do menino que desmaiou na linha férrea e foi atropelado pelo trem , com seu corpo esquartejado recolhido diante de nossos olhos infantis, tingindo de vermelho as pedras e dormentes. A dor da velha que perdeu uma perna naquelas linhas, de propósito, apenas para vingar-se de um filho com quem se desentendera horas antes, ecoa em gritos na nossa memória. Também as brincadeiras de finca, de bafo, porta-bandeira, do futebol de rua, de brigas entre “trincas”, de todas essas coisas que moldaram nosso caráter, forjados ludicamente, desapegados das didáticas que nos impõem ao longo da vida, quase todas elas com o propósito de perpetuarem a infelicidade dos apedeutas que ditam regras e costumes no mundo. Nesse ambiente, vivenciei com Natalino, morto recentemente em acidente de carro, as alegrias suburbanas de então, que a memória agora evoca de forma pungente, saudosa de sua presença e do seu testemunho dessas coisas simples. Acima de tudo, da amizade inocente que permeia as relações infanto-juvenis, do pacto firmado e selado sem a nódoa da inveja, da disputa e da hipocrisia, cimentado na confiança que há entre meninos, e que os adultos tem o vezo de esquecer, presos aos grilhões de seus desejos, à escravidão ao poder, político ou financeiro. Natalino morreu sem deixar patrimônio material, que eu saiba. Mas deixou muitos órfãos entre a gente simples, e era comovente ver o choro coletivo sobre seu esquife. Insondáveis são os desígnios de Deus, a quem submetemos nossas vidas. A ausência de Natalino dói como uma chaga viva, mesmo na certeza de que ele, discípulo de Nossa Senhora Aparecida e apostador contumaz, por certo deve estar a fazer uma fezinha no jogo entre o bem e o mal, nesta peleja entre Deus e o Demo, apostando suas fichas na vitória do bem, no xeque-mate do Criador no dia do juízo final.
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