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montesclaros.com - Ano 25 - quarta-feira, 6 de novembro de 2024
 

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Mensagem: WANDA VELOSO DOS ANJOS RAMOS * 1917 + 2014 Hoje é dia do meu aniversário e o melhor dos meus presentes seria ouvir a voz bonita da minha mãe... Uma das suas cantigas - alegre ou triste, que acalentasse o meu coração e aliviasse o meu estranhamento pela sua ausência. Ouvia desde sempre, porque ela gostava de cantar, e eu amava ouvi-la. Até hoje sei de cor as cantigas - A Marselhesa, a Giovinezza, o hino à América, à Escola, à Montes Claros, à Primavera... ´A Primavera é uma estação florida Cheia de flores e real fulgor De flores enche o coração da vida De vida enche o coração da flor...´ ********** ´...Papai do céu, por favor Deixe voltar a maninha Pobre dela, coitadinha Ela nunca mais brincou A Mamãe vive a chorar E lá em casa tudo chora A vovó só conta histórias Quando a maninha voltar... Deus escuta meu pedido Ela não suja o vestido Eu vou segurando o véu E quando a noite chegar Maninha torna voltar Pra dormir aí no céu...´ Intrigava-me quem seria esta maninha, ela não perdera ainda nenhum dos seus oito irmãos e seis meio irmãos. Depois me lembrei: Mamãe contava, repetidas vezes, que brincava, numa tarde, de zangue zalangue* com Clélia, sua prima em primeiro grau, filha dos tios Carlito Versiani dos Anjos e Joaninha Versiani Velloso. Discutiram pelo direito de se balançar, o balanço estava armado numa árvore gigantesca, no quintal. Clélia ganhou no par ou ímpar, sentou-se, e, ao firmar o pé no chão, deu um grito. Sentira uma ferroada forte. Os adultos vieram, mandaram chamar tio Mário, farmacêutico e irmão de tia Joaninha, mas não houve jeito. Um escorpião se disfarçara entre as folhas secas e horas depois a Clélia morria. Naqueles idos de 1923 não se usava levar crianças à psicóloga, e Mamãe se emocionava sempre ao se lembrar da prima e amiga. Mas não chorava, e aprendi com ela a segurar o choro. Em 1927 perdeu subitamente o pai e tal perda a marcou profundamente. Em 1930, Mamãe estava no cortejo do vice-presidente Mello Viana**, levando pela mão seu irmão Ruy, que tinha as pernas fracas, recém saído de uma doença prolongada. Quando passavam pela Praça Dr. João Alves, em frente à casa da famosa dona Tiburtina, casada com o médico doutor João Alves, onde está hoje o Automóvel Clube de Montes Claros, escutaram um intenso tiroteio, e ninguém sabia de onde vinham os tiros. A multidão se apavorou, e dizem que um veterano da Guerra do Paraguai gritou: - Deita, minha gente! Ambos se desgarraram da mãe, Vovó Antônia Veloso, que estava junto, e correram com o povo até o antigo Cemitério, no terreno da Catedral, que ainda não fora construída. Todos estavam assustadíssimos, os boatos eram muitos, diziam que havia mortos e feridos. Não havia luz no cemitério, e a escuridão aumentava o medo, os adultos estavam mais amedrontados que as crianças. Muito tempo depois alguém os reconheceu e levou-os para a casa de Vovô Antonio dos Anjos. Sua filha Alice Versiani dos Anjos já se sentia mal, não sabia o que lhes teria acontecido. Disseram à boca miúda que a ordem de atirar teria sido dada pela dona Tiburtina, registrada na história como mulher destemida e ousada. Dona Wanda estudou algum tempo em Pitangui, na casa dos tios Tonico Versiani dos Anjos e Sophia Ferranti, que eram muito sociáveis e promoviam bailes adorados por Mamãe. Daquela cidade trouxe uma canção lindíssima, contando a história da moça assassinada pelo pai, em Ouro Preto: “Dizem velhos moradores ainda transidos de horror que em tempos já distantes fora ali assassinado por um pai desnaturado um jovem casal de amantes...” *** Mamãe veio para Belo Horizonte, acompanhando o avô Antonio dos Anjos, os tios Cyro e Waldemar e as tias Alice, Biela e Carlotinha. Vovó Carlota Versiani dos Anjos já era falecida. Passou a frequentar a Escola Normal Modelo - hoje Instituto de Educação. Contava que todos se apavoraram com os tiros disparados durante a Revolução de 30, que atingiram várias galinhas do quintal, na rua Tomé de Souza, no bairro Funcionários. A família regressou a Montes Claros e ela se matriculou na antiga Escola Normal. Suas colegas eram Ruth Tupinambá Graça, dona Dezuita e Maria Aparecida Dias Netto, entre outras. Depois de formada, em 1933, deu aulas no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, na Praça Dr. João Alves. Foi nomeada para o Grupo Escolar Dr. João Porfírio, em Salinas, junto com Heloisa Veloso Sarmento, sua irmã e amiga mais querida. Mudaram-se para lá, em 1934. Casou-se em 1935 com o salinense Lúcio Ramos, e éramos cinco irmãos. O mais velho - Wilson José Ramos, faleceu aos 46 anos. Em 1959 toda a família se mudou para Montes Claros e dona Wanda ainda trabalhou no Grupo Escolar Dr. Carlos Versiani - nome do seu bisavô - até se aposentar. Lá, moramos na Avenida Afonso Pena e depois na Avenida Francisco Sá. Quando Papai faleceu, em 2002, Mamãe quis permanecer na mesma casa, onde residia há mais de 30 anos. Sua saúde foi se debilitando, nos últimos anos estava na cadeira de rodas. Tinha muito medo do CTI, pedia que não a deixássemos ser levada para lá. Sua estrutura óssea definhou, ficou uma mulher miudinha, que ainda adorava os jornais. Já não lia mais os amados livros, só reconhecia as pessoas muito próximas. Até se esqueceu de rezar o terço, de que tanto gostava. Via TV, mas nada guardava. Nunca maltratou as acompanhantes, não ficou agressiva. Era sempre muito bem educada, agradecia a cada vez que lhe serviam alguma coisa. Gostava de recitar comigo as antigas poesias - Vozes d`África, A cruz da estrada... Ainda há pouco tempo cantávamos juntas e ela se lembrava das cantigas - perfeitamente. Às vezes me corrigia - está desentoando! ...Hoje é dia do meu aniversário e o melhor dos meus presentes seria ouvir a voz da minha Mãe. Uma cantiga alegre ou triste, que acalentasse o meu coração e aliviasse o estranhamento pela sua ausência... Iara Tribuzzi, outono de 2014 * Zangue zalangue: era como se denominavam os balanços rústicos ou caseiros, confeccionados com cordas e tábua. ** Tiburtina: Em 6 de fevereiro de 1930, registrou-se trágico incidente em Montes Claros, que Assis Chateaubriand batizou de “emboscada de bugres”, de que se aproveitou largamente a imprensa nacional. Um tiroteio vespertino na maior cidade norte-mineira, após ali desembarcar o vice-presidente da República, Mello Viana, acompanhado de ilustre comitiva, contribuiu para precipitar o processo de ebulição política e a eclosão da revolução, que se confiava, seria mais que substituição de um presidente. SANTOS, Manoel Hygino dos Vargas - de São Borja a São Borja – Belo Horizonte, 2009 *** “Ai, minas de Vila Rica Santa Virgem do Pilar! Dizem que eram minas de ouro... - para mim, de rosalgar, para mim donzela morta pelo orgulho de meu pai. (Ai, pobre mão de loucura, que mataste por amar!) Reparai nesta ferida que me fez o seu punhal: gume de ouro, punho de ouro, ninguém o pode arrancar! Há tanto tempo estou morta! E continuo a penar.” MEIRELLES, Cecília, 1901-1964 Romanceiro da Inconfidência, São Paulo, Editora da USP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004 Belo Horizonte, outono de 2014

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