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Mensagem: Minha Dr. Santos 1ª Parte – Da D. João Pimenta a D. Pedro II. Nas brumas dos meus mais profundos relembramentos, recordo difusamente de uma bolinha percorrendo um pequeno aclive de um alpendre. Minha visão esconsa se delineava pela posição da minha cara postada no arejado e liso chão. Com o arco do meu braço, eu lançava uma bolinha de gude pelo cimento queimado e a assistia percorrer uma ligeira curva até retornar mansa à outra mão. O movimento repetido, silencioso, ecoa-me, até hoje, quietude e segurança. Posso até confundi-lo com um sonho longínquo, mas sempre foi a minha primeira lembrança. Depois, misturadamente, lembro-me de tantas outras infantes coisas, gentes, lugares, cantos. Mas fora do seio familiar, o que ficou forte foi a casa da minha avó. Lá tinha morangos nos canteiros, histórias, um pé de manga ubá e forno de biscoito. Encantos e desejos dos netos. Viva é a lembrança da minha mão, balizada pela da vovó, a alinhavar as primeiras letras com o bico de confeiteiro. O biscoito espremido desenhava palavras, nomes, coisas. Mágica e ofício da Mestra Fininha. Na casa da Vovó, o acesso permitido à rua se limitava ao resumido passeio da Dom João Pimenta até a barbearia de Osmar, Bigode e Caxangá, que ocupava o cômodo geminado na esquina com a Rua Dr. Santos. O outro era o consultório do meu pai. Na verdade, duas salas, uma de espera, bastante simples, e a outra de consulta com móveis espartanos. Na parede uma cópia da clássica pintura de Samuel Luke Fildes, que registrava uma criança doente assistida por um médico e o desespero da mãe, debruçada sobre a mesa, consolada pelo pai. Das janelas, da mureta do jardim e pelo baixo portão de Dona Fininha, eu via a subida das pias senhoras com terço à procura de missa e a descida do Sr. Eupídeo da Rocha, de chapéu, todo circunspecto, com Irene de longa saia rosa, a segui-lo. De quando em vez, Tuia passava curvado com o bastão e seu bico enrolado, e resmungava baixinho: “Tuia é bonzinho, Tuia é bonzinho”. Volta e meia, surgia o fardado Leonel, imenso, reluzente, com sua boneca e banda despejando alegria pela rua. Fazia reclames das Casas Futurista e Pernambucanas num megafone de lata. Lembro-me daquela montanha vermelha e azul, com um turbante florido na cabeça, peitos enormes, desmedidos brincos de argolas, rodopiando os braços mambembes ao som da banda de João Tintureiro. Ao chegar perto da gente, se curvava, baixando sua gigantesca cabeça, e se contorcia de novo num trezentos e sessenta. Eu não sabia se corria, chorava ou aplaudia. Ficava extasiado, estarrecido. Aquela bonecona imensa tinha os pezinhos pequenos, desproporcionais, metidos num conga surrado. Na barriga dela, na altura do umbigo, entre os botões da blusa, havia uma telinha preta, que, hoje sei, era por onde o dono do conga espiava. A barbearia era movimentada. Tinha 3 portas, uma para Dom João Pimenta e as outras duas para a Dr. Santos, sendo que uma delas permanecia meio fechada, com a parte de baixo fixa e a banda de cima escancarada. Havia cadeiras, um banco com jornais e revistas e um outro para engraxate. Na parede, destacavam-se os espelhos em frente às poltronas dos barbeiros e dois pequenos quadros. Um da Transamazônica, com a imensidão verde riscada por uma estrada alaranjada e o outro, em contraste, exibia uma paisagem campestre européia com montanhas nevadas no horizonte. O som ambiente, além do vozerio dos clientes, provinha do amolar das navalhas “Corneta” e “Solinger” no afiador manufaturado de raiz de tamboril. A barbearia me inseriu no mundo. Sentado nas suas cadeiras, à procura dos semanais desenhos do Amigo da Onça na revista O Cruzeiro, ficava atento aos fuxicos e burburinhos de Moc. Nas longas esperas dos repetidos cortes do meu minúsculo topete alemão, assistia e ouvia a cidade passar e conversar, ao aroma de água Velva. Assuntava palestras e bravatas de gente grande, comerciantes e fazendeiros, via o passar discreto do povo simples e a euforia de Maria Babona, Requeijão, João Doido, Galinheiro e Requebra-Que-Eu-Te-Dô-Um-Doce. Betão Ronca-Ferro e Lena Doida vieram depois. Na minha vez, Bigode, para lhe dar altura para o corte, empoleirava-me na tábua que colocava no apoio dos braços da cadeira de barbeiro, e eu, do alto, de camarote, assistia o desfilar das pessoas, feirantes e populares e dos poucos carros que desciam a Dr. Santos. Privilegiadamente, dali, testemunhei as tropas carregadas, descendo para o antigo mercado municipal, os feirantes cobertos de fieiras de galinhas e os carrinhos de mão com hortaliças. Vi e ouvi as carroças de leite da cooperativa tocarem o insistente sino a convocar os compradores de leite com os seus alvos litros e vasilhas, presenciei o troca-troca dos cartazes dos cinemas, a chatura dos cambistas de loteria e as cornetadas dos vendedores de quebra-queixo. Mais crescido, sentado sem a tábua, observei a chegada das primeiras kombis lotação e o asfaltamento dos paralelepípedos. Senti, então, pela primeira vez, o cheiro forte do piche preto. Abaixo da barbearia, logo depois do consultório de meu pai, havia “O Guarani”, onde se vendiam as vitaminas de abacate, de mamão e os pastéis de Vadiolando. Em frente, a pensão e o armazém do seu pai, onde viviam também, Cori e Dedé, todos de Itapetinga. Segundo Marão, Vadim, jeitoso, gostava de uma catira – comprava e vendia tudo, de revólveres a bezerros. A morada seguinte era de Jason Teixeira, onde nasceram Lucília e Adriano, depois vendida para o Crisantino Borém. Lá, vi crescer uma ninhada de louros e ruivos meninos e meninas, todos sob o carinho de Dona Celme, depois sob o afago e a tutela de Tetese. No mesmo passeio, descendo, morava Seu Dé e Dona Gregória, pais de Nonô, Hélio, Jason, Didi e Tone, donos da Casa 5 Irmãos, e de Terezinha, Zoca, Geralda e Dezinho. Todos finados. Quem não se recorda da bem cuidada baratinha Volks do Seu Didi? O lar subsequente era de Seu Meira, esposo de Dona Terezinha, progenitores de Carlão, Lú, Regina e do açodado Ernani. Foi ele o primeiro menino que vi casar. Na minha infantilidade e inexperiência, rezei por Nane e para sua família recém constituída, pois não sabia que conselhos dar para aquele desatino, aquela modernidade. O domicílio fazia muro com a grande residência de João Valle Maurício. Esta tinha janelões altos, abertos para a rua mais movimentada da cidade. Lá, talvez pelo meu pequeno tamanho, o pé direito era imenso, colossal. Da ampla sala saía um corredor que distribuía quartos e cômodos. As paredes eram cobertas por quadros e apetrechos antigos, históricos. Tudo muito limpo e brilhoso, cristais e mil objetos que nós, meninos, não podíamos encostar, nem tocar. O jardim lateral da casa, com roseiras coradas e brancas, dava passagem para o quintal que tinha uma espaçosa pista de patins, local de exibição dos jovens na tentativa de impressionar as mocinhas de Dona Milene: Mânia, Nairzinha e Vitória. Liliane não existia ou era pituxinha. Ali aconteciam o melhor São João e as mais fartas festas. Colada na moradia de Dr. Maurício, se instalou por um tempo o Diário de Montes Claros, dos honrados, sérios e comprometidos jornalistas Décio Gonçalves de Queiroz e Julio Melo Franco, que mais tarde pulou para o outro passeio da Dr. Santos. Com a mudança da gráfica o ponto ficou um bom tempo fechado, mas depois foi instalada ali a pensão da Dona Sônia. A habitação seguinte era do Loyola, médico, professor, pai de Roberto, Eunice e Maria Helena. Fefeu e Jane nasceram bem depois. Neste mesmo passeio, o esplendor da mansão de Domingos Braga estalava, ainda mais com o Cadilac Vermelho, rabo de peixe, na garagem. O homem era famoso, tinha até revolver todinho de ouro. Pelos fuxicos que ouvi nos anteontens, o palácio teria sido comprado à vista por Luís de Paula. Quase chegando na Dom Pedro II, recordo tristemente da Prontoclínica São Lucas, onde, em 71, rezamos imploradamente para que Telmo Machado não morresse. Foi a minha primeira sentida morte. Dói até hoje. Ao lado da Prontoclínica, na esquina, estava a farta, variada e moderna “A Cubana”, ponto da rapaziada fumar cigarros Minister, Capri e tomar Cuba Libre. Vendia até as raras e caríssimas maçãs niqueladas embrulhadas em papeis purpúreos, cheirosos, que só nos eram oferecidas quando estávamos doentes e sem apetite. No andar de cima do edifício moravam os Deusdarás e o casal Edílson Brandão e Aparecida, pais dos pequeninos Junior, Evana, Simone, Raquel e Elbinha. Quina oposta, em uma construção mais alta, com pequena escada na entrada, residiam Dona Joaninha Colares e seus filhos: Geraldo, Teresinha, Rosarinha, Cassimiro, João Ricardo, Ray e Fernandinho. Acima, no mesmo passeio, viviam Lezinho Lafetá, mulher, filhos e filhas. Do lado, havia um corredor utilizado para esvaziar as sessões do seu Cine Fátima. Mais tarde, veio a ser um fliperama e na sobreloja uma boate. Em seguida, uma casa da Tia de Ernani Meira, que depois foi de Carlos Leite e Felicidade Patrocínio. Parelho, havia um domicílio que foi antiga habitação de Moreira César e depois de Luis de Paula. Posteriormente, escritório da FUNM e, mais recentemente, depósito/escritório do mesmo Luis. Grudado era o ponto para onde o Diário saltara. Não podia me esquecer também da Pensão de Dona Docha, residência de Janete, Ivonete e Clara e, posteriormente de Dona Zélia Peres, mãe de Gilson Capeta (hoje, Gilson de Jesus), da anja Railda e de Robertinho. Ao fundo, com um corredor de entrada, um galpão abrigava o Supermercado da Cobal e a Gráfica Orion de Laerte e Mauziur, irmãos de Nice David. Os mais antigos dizem que o salão que abrigava o supermercado fora antes o restaurante Mangueira, palco de várias festas promovidas pelo colunista Lazinho Pimenta, como suas noites do Suéter. Não me esqueço da Pensão de Dona Duca Guimarães, mãe de Edith, Judith e de Zenith dentista. Mais tarde, a pensão transformou-se no Prontocor, fundado por Mauricinho. Logo após, passeio acima, um corredor profundo com duas residências dos filhos de Levi Peres; coladinho ao corredor havia a pensão Montes Claros, do Seu Son, pai de Glória e de João Beatles. Arriba, a Vidraçaria Carioca de Rosenthal, pai de Dawidson Caldeira e, passo adiante, a Lavanderia Estrela, de Luis. Pronto. Salvo alguma falha da memória, retorno-me ao já mencionado ponto de Vadim, encerrando as casas da rua Dr. Santos naquele quarteirão. Não me recordo de trança-trança de carros e motos. Só me lembro é de uma Montes Claros calma, sossegada, de um povo sem pressa, com todo tempo do mundo para um dedo de prosa. Que saudade! Infância cada um tem uma. Estas recordações fazem parte da minha. Bem, eu não poderia deixar de agradecer os bons papos e o auxílio das refinadas memórias de Ernane Meira, Nilo Pinto, Haroldo Tourinho, Roberto Machado, Magna e Fábio Marçal.
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