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montesclaros.com - Ano 25 - terça-feira, 24 de dezembro de 2024
 

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Mensagem: BAIXADA DA SANTA CASA 1ª PARTE Dia desses, bestando calado em uma demorada espera de consulta médica, fiquei abismado com o caos que se transformou o entorno da Santa Casa. Trança-trança de barulhentas ambulâncias à procura de um estacionamento e de indóceis pacientes em busca de atendimento. Aquele furdunço todo a acontecer no meu naco mais íntimo, onde vivi a minha divertida infância e adolescência... Antes, era um arrabalde de casas ocupadas por famílias empencadas de crianças. Não existia comércio, nem consultórios, nem clínicas, nenhuma prestação de serviços. Não havia mão nem contramão, pois automóveis não transitavam por ali, salvo os de uns poucos moradores. Precárias ruas sem pavimentação, cobertas de cascalho miúdo socado, terminavam naquela baixada, que tinha ao fundo o rio Vieira. A Coronel Luiz Pires, que começa na avenida Cel. Prates, só rompia três quarteirões abaixo, até pouco depois da fábrica do Café Diplomata e reduzia-se a uma ruela ramificada em trilhas que nos levavam as margens do nadável rio. A Rua Irmã Beata morria na funerária da Santa Casa, em frente à residência de Píndaro. Sua paralela, a Cel. Spyer, era um beco sem saída, nem começava direito e já esbarrava no muro lateral do Colégio Imaculada. Estes poucos logradouros e mais o mato ao redor eram o nosso gueto, o nosso umbigo, sempre envolto num perene aroma de café torrado. Raramente deparávamos com crianças que não fossem da nossa tribo. A baixada não era passagem para lugar algum, a não ser para uma pinguela que nos levava ao Curtume, onde um prático dentista, sempre chapado, ameaçava cair todo entardecer ao retornar do seu arranca-dentes. Durante as chuvas, a trilha ficava escorregadia e a meninada, empoleirada na escadinha do café, torcia pelo tombo. Queda ocorrida, com aplausos e risos, corríamos para socorrê-lo. A primeira casa da Cel. Luiz Pires era do seu Ernesto da Barroso(1), que não gastava tempo com a nossa rua. Toda manhã o seu sentido estava no quarteirão do povo, na sua papelaria, no escarafuncho dos assuntos políticos e nos fumegantes fuxicos do Zim Bolão. Abaixo, onde hoje é a Santa Casa Olhos, morávamos nós(2) - papai, mamãe, oito filhos e, durante um tempo, os nossos avós maternos. As casas da baixada não eram protegidas por muros. Tinham apenas muretas ou grades pequenas, que não tapavam as fachadas das residências. As portas viviam abertas, a meninada entrava sem bater, convocando para as brincadeiras. Andávamos em bando, conluiados, brinquedos e segredos compartilhados. Em frente da nossa casa residia Dona Gladys(3), generosa mestra do Grupo Francisco Sá, que pacientemente alfabetizou metade dos meus irmãos com suas aulas particulares. Vivia com seus filhos, três sobrinhos e sua calada mãe, Sá Luíza, sempre munida de cachimbo e muleta. À tardinha, Sá Luíza nos dava um troco para comprarmos o seu traçado na venda de “Genaro Meu Irmão”(4). Os seus filhos Tinim e Waltinha eram meus irmãos de unha e carne na infância. Eu passava o dia na casa deles. Lá criávamos preás, coelhos, tartarugas, cágados, passarinhos, fazíamos manivelas, montávamos pipas, araras e guardávamos todos os nossos tesouros em seus quartos: bolas, canivetes, bilboquês, gibis, piãos, bolinhas de gude e álbuns de figurinhas. Mônica, minha irmã, também adorava estar ali, mas seu interesse era outro – ler e reler as melosas fotonovelas das revistas Capricho e Contigo, que nossos pais proibiam terminantemente. Ao fundo da casa de Dona Gladys havia outro café, o Primor, do popular Tuca Amorim. Ao final do dia, escalávamos um robusto pé de goiaba encostado no muro divisório para nos deliciarmos vendo, pelas frestas do telhado, as funcionárias da fábrica tomarem banho para retirar o suor e a fuligem do café. A meninada, empoleirada, toda de pintinho duro, nem piava. De olhos arregalados, maravilhava-se com aquele mulherio pelado, risonho, ensaboando-se. Puro cinema. Marquim, meu irmão, que só conhecia xibiu de criança, ficou decepcionado ao subir na goiabeira pela primeira vez: - Ô Ucho, eu só vi os peitos delas, não deu pra ver o resto, não. Todas puseram umas buchas entre as pernas. Na esquina do Café Primor, em frente, estava a casa de seu Edson, que era dono de uma Rural saia e blusa, branca alaranjada, e da lanchonete localizada no passeio da Praça Dr. Carlos. Ele e Dona Teresa tinham uma ninhada endiabrada de filhos: Panga, Baixote, Edí, Ninha e Lê. Patota malinamente entrosada com todos os meninos da rua. No outro passeio da esquina da Irmã Beata, residia o famoso Cel. Georgino(5). Era dos poucos adultos, ou o único, que sentava com a meninada para prosear. Criança era apartada de gente grande. Mundos diferentes, mas como vivíamos sentados no murinho da sua casa, maquinando para aprontar alguma, de quando em vez o Coronel aparecia e dava uma canja com seus causos. Certa vez, ele chegou a esta mureta, onde amontoava-se a meninada miúda e alguns graúdos e começou a contar uns causos de onça. Cada um mais arrepiante do que o outro. Numa das estórias, depois de narrar com detalhes a enorme e raivosa onça pintada e relatar minuciosamente como a bichona faminta se encorpava pra cima dele, Ruy do Bongô, troviscado, com os olhos arregalados, o interrompeu abruptamente: – Coronel, Coronel, mas esta onça devia tá muito doida pra querer enfrentar o senhor, não? Georgino não conteve o siso, nem o riso, gargalhou. Era neste baixo muro que a molecada se juntava, desde as primeiras horas da manhã até a noite, para bolar as brincadeiras: brasil e espanha, mãe da rua, queimada, paredão, acadabaspará. Criávamos e praticávamos jogos com simples paus e pedras. O nosso “cabas pará”, chamado em Belo Horizonte de “bentealtas”, era jogado no passeio dos Melo Francos. Lá tinha uma tampa de ferro da Caemc que servia de um dos apoios para o jogo. As duplas se formavam e aguardavam a vez definida no par ou impar. Horas se passavam naquele divertido vai-e-vem, na tentativa de derrubar a casinha piramidal feita de três pauzinhos de madeira pregados num quadradinho de couro. Nada como aparar no ar uma bola defendida ou arremessada e gritar: Vitória! Quando surgia um álbum novo de figurinhas, o bafo tomava conta dos passeios. Chamava-se bafo porque era o vento provocado pelas mãos durante a batida no monte de figurinhas que as fazia virar. A garotada formava roda para a disputa. Cada menino colocava uma quantidade combinada de figurinhas no bolo e, pela ordem, depois de arrumá-las, batia com a mão em concha ou aberta no monte. As que viravam ao avesso eram recolhidas pelo garoto que tinha acabado de bater. Uns mais traquinos curvavam um pouco as figurinhas ou passavam um leve cuspe na mão para virá-las. Volta e meia uma trapaça era descoberta e os sopapos comiam soltos. Raiva e choros amansados, a molecagem voltava ao jogo. Ninguém chamava papai ou mamãe. A parada era resolvida ali mesmo, naquele foro infantil. Certas brincadeiras eram definidas pelas estações. Em agosto, com os fortes ventos, no azul céu surgiam as coloridas pipas e araras. A meninada, com os sentidos nos ares, dedicava o dia à manufatura de seus artefatos voadores. Cola, papel e os carretéis de linha 40 eram comprados na loja de Tamiro, no beco Cônego Marcos, e as taliscas eram retiradas dos raros pés de bambus existentes na baixada. O sonho da criançada era montar uma arara biteluda, multicolorida, rabuda ou sureca, e ter uma manivela de 16 cruzetas nas mãos para recolher ligeiro e esticadinha a linha. Final de setembro, com a chegada das chuvas e a maciez dos terrenos, iniciava-se a temporada dos jogos de finca e bolinha de gude. O chão das ruas ficava todo riscado pelas fincas e biloiado pela variedade de bolinhas existentes à época: gataiadas, leitosas, sorteiras, bolofofos. Só se ouvia a criançada gritar: “Gute, please, todos!”, “Bololô na minha!”, “Mão quieta!”, “Rondas!”, “Quero tudo e não dou nada”. A despedida das águas era o tempo de sairmos à cata de tanajuras. A meninada toda, com uma garrafa litro debaixo do braço, se espalhava pelas ruas colhendo as formigonas bundudas para trocar com Toni Pinguim por um picolé. O nordestino adorava comê-las fritas como pipoca, mas tínhamos a leve desconfiança de que ele usava o creme das bundas delas para fazer os tão procurados picolés cremosos. Continua... NOTAS: (1) Ernesto e D. Dilma, pais de Ana Amélia, Ernesto, Paulão, Dilsinho, Denise. (2) Mário e D. Jacy, pais de Pat, Fred, Ucho, Marquim, Mônica, Paulinho, Márcia e Bertha; vovô Pacífico, vovó Eny; três auxiliares que seguravam o tranco das tarefas caseiras: Joana, Dui e Sá Rita; e Benjamim, o motorista. (3) D. Gladys, mãe de Beatriz, Fidelina, Tião, Tinim, Waltinha. Viviam ainda lá, os sobrinhos Neguinha, Luizinha, Eustáquio e a avó Sá Luiza. E era diariamente frequentada pelos primos Carlúcio (Tuca) e Lóis. (4) Genaro, pai de Glicério, o rei das embaixadinhas, mascote do Cassimiro de Abreu, e de Glicéria e Glicídia. (5) Cel. Georgino e D. Dinorah, pais de Lúcia, Lídia, Leda, Jorge, Georgino Junior (Gininho), Jefferson (Jessinho) e Guilherme.

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